Recordações de Verão (a casa da falésia)
Por mais felizes e generosos que sejam os anos da nossa juventude, nada poderá superar a memória daquele Verão quente de 75 passado na praia. O meu primeiro amor, o meu primeiro beijo, ali junto à beira-mar com o calor da paixão a ser mais forte do que o do próprio sol. Mas o tempo passa e, apesar de ter continuado a frequenta-la, a praia jamais será a mesma que conheci na infância. Gosto, contudo, de atravessa-la de uma ponta à outra durante os meses de Inverno; sentir o vento fresco contra o meu rosto, ouvir as ondas do mar calmo espumarem-se na areia.
Ao passar pela falésia, vejo uma mulher sentada lá ao cimo. Segura um grande objecto quadrado que se parece com uma tela. Deve estar pintando e provavelmente, seremos as únicas almas vivas num raio de quilómetros. Dizem que está sozinha, pois o marido passa muito tempo fora de casa, encontrando na paixão pela pintura, um companheiro para a solidão. Dei comigo a pensar nas vezes que aqui passei sem que reparasse nela ou ela em mim.
Fixei-a demoradamente. Enfeitiçado talvez pela curiosidade ou pelo seu longo cabelo negro esvoaçando ao vento, deixei-me levar até ela. Subi a falésia por um caminho estreito e a cada passo que me aproximava do objectivo, procurava inventar uma forma, uma desculpa para justificar a minha intromissão, embora todas me parecessem banais. Afinal, qual era a finalidade da minha visita? Que fazia ali? Avistei-a mal cheguei ao cimo; estava a uns cem metros e não me viu. Fiquei curioso por descobrir o que pintava, mas à medida que me aproximava, algo mais surgiu em mim, talvez a minha própria natureza a revelar-se. Senti aquele puto que conheceu o seu primeiro amor neste mesmo local tentar sair. As imagens vinham-me à cabeça com uma velocidade tal que não as conseguia acompanhar.
Cheguei por detrás sem que desse pela minha presença. A visão do mar infinito dali, era uma imagem linda; ondulante como o seu lindo cabelo negro. Senti uma incomensurável atracção por aquela mulher cujo rosto ainda nem sequer vira. Reprovei-me ao compreender que a desejava naquele momento mais que qualquer outra coisa no mundo. Pintava uma praia bonita mas vazia que agravou ainda mais o desejo de pertencer àquele quadro. Quis cumprimenta-la mas não consegui pronunciar uma sílaba como se a alma se me tivesse fechado por dentro. Finalmente, a custo, consegui pronunciar um trémulo:
- Olá!
Ela devia estar demasiado absorta nos seus pensamentos porque estremeceu ao som da minha voz. Ao faze-lo, desequilibrou-se e caiu da falésia abaixo.
Joguei às mãos à cabeça e compreendi finalmente o meu erro. Por muito que o desejemos, o passado e o presente não se podem misturar; são como a água e o azeite, como a Égua e o cão Labrador. Restam-nos o saudosismo da memória dos tempos passados, mas é no presente que realmente importa viver porque se morrermos no presente, não viveremos no futuro e dificilmente conseguiremos voltar a recordar-nos do passado.
Abandonei aquele local ermo que me pareceu subitamente vazio. Nunca mais voltei àquela praia, mas a casa da falésia, continua lá.
FIM
Ao passar pela falésia, vejo uma mulher sentada lá ao cimo. Segura um grande objecto quadrado que se parece com uma tela. Deve estar pintando e provavelmente, seremos as únicas almas vivas num raio de quilómetros. Dizem que está sozinha, pois o marido passa muito tempo fora de casa, encontrando na paixão pela pintura, um companheiro para a solidão. Dei comigo a pensar nas vezes que aqui passei sem que reparasse nela ou ela em mim.
Fixei-a demoradamente. Enfeitiçado talvez pela curiosidade ou pelo seu longo cabelo negro esvoaçando ao vento, deixei-me levar até ela. Subi a falésia por um caminho estreito e a cada passo que me aproximava do objectivo, procurava inventar uma forma, uma desculpa para justificar a minha intromissão, embora todas me parecessem banais. Afinal, qual era a finalidade da minha visita? Que fazia ali? Avistei-a mal cheguei ao cimo; estava a uns cem metros e não me viu. Fiquei curioso por descobrir o que pintava, mas à medida que me aproximava, algo mais surgiu em mim, talvez a minha própria natureza a revelar-se. Senti aquele puto que conheceu o seu primeiro amor neste mesmo local tentar sair. As imagens vinham-me à cabeça com uma velocidade tal que não as conseguia acompanhar.
Cheguei por detrás sem que desse pela minha presença. A visão do mar infinito dali, era uma imagem linda; ondulante como o seu lindo cabelo negro. Senti uma incomensurável atracção por aquela mulher cujo rosto ainda nem sequer vira. Reprovei-me ao compreender que a desejava naquele momento mais que qualquer outra coisa no mundo. Pintava uma praia bonita mas vazia que agravou ainda mais o desejo de pertencer àquele quadro. Quis cumprimenta-la mas não consegui pronunciar uma sílaba como se a alma se me tivesse fechado por dentro. Finalmente, a custo, consegui pronunciar um trémulo:
- Olá!
Ela devia estar demasiado absorta nos seus pensamentos porque estremeceu ao som da minha voz. Ao faze-lo, desequilibrou-se e caiu da falésia abaixo.
Joguei às mãos à cabeça e compreendi finalmente o meu erro. Por muito que o desejemos, o passado e o presente não se podem misturar; são como a água e o azeite, como a Égua e o cão Labrador. Restam-nos o saudosismo da memória dos tempos passados, mas é no presente que realmente importa viver porque se morrermos no presente, não viveremos no futuro e dificilmente conseguiremos voltar a recordar-nos do passado.
Abandonei aquele local ermo que me pareceu subitamente vazio. Nunca mais voltei àquela praia, mas a casa da falésia, continua lá.
FIM
Nota: Estes textes fazem parte das memórias de Francis que deveriam ser publicadas após a sua morte com o intuito de valoriza-los. No entanto o sacana sobreviveu ao empurrão que lhe deram para debaixo da Automotora. Tem os dois braços engessados mas continua a escrever com os dedos dos pés.
11 Comments:
...sabes...era eu! caí...mas não morri...cai numa plataforma um pouco abaixo, só esmurrei os joelhos...
mas com que então eras tu que há 500 anos me espiavas!!!!
Ficção ou realidade...gostei desta tua narrativa e de facto o que se viveu nunca se misturará com o que se vive ou viveremos.
O teu PS é real?:(
Beijos
Pobre criatura, foi-se pela falésia abaixo e com ela a magia, de fazer o passado ser presente!
Excelente, amigo Francis. Um registo diferente do habitual, mas com a mesma qualidade!
Saudações infernais!
O PS, não é real, aliás como nenhum que eu conheça!
eheheh!!
Um 'post' que foge ao habitual aqui do 'Churrasco'. Mas, e sem duvida, um post de excelente qualidade! Bom trabalho Francis!
Já agora, quando morreres isto vai dar dinheiro certo? =P
... Só não (me) falaste das cores que eram utilizadas na tela...
Fico um tanto preocupada com o teor do "postal".
Um grande beijo.
Uma boa realidade bem ficcionada, diria eu. Gostei.
Saudações!
E nem sequer foste ver o corpo, para lhe sacar a carteira???
Não se aflijam, eu estou bem. a alma é que piorou...
M, nem que fossem preto e branco, seriam sempre cor! :-)
Rafeiro, estou eu preocupado por descobrir que a minha juventude me foge debaixo dos pés e tu preocupado com uma gaja que nem conheces???
Ai o primeiro beijo!!!
Quem não recorda o seu primeiro beijo.È tão bom tão bom, que por vezes tenho a parva tentação de ser levado a pensar que nunca se deveria dar mais nenhum e conservar para sempre o gosto daquele "special one"
Tonterias e velho, está bem de ver.
Cheguei aqui através do Roadrunner... e gostei
Um abraço
Excelente registo. Fica-te bem.
De sessenta e poucos, hem? Bom saber! :-)
Opá, muita bom. Este impulso criativo terá algo a ver com um livrito do engenheiro saraiva no algarve?
renegade
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